quinta-feira, julho 14, 2005

Assim haja vontade política!

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Em época de profunda falta de inspiração, é com grande jubilo que publico aqui as reflexões de um Ilustre Advogado da nossa praça sobre o tema deste blog.


Pelo interesse que revela e por motivos de contextualização não posso "meter a faca" neste texto.

Como o li, assim o transcrevo, agradecendo a gentil cedência do seu autor:

"ADR’s penais?
Os meios alternativos na área criminal

José António Barreiros
Advogado


Parece uma heresia falar de meios alternativos de resolução de litígios na área penal, onde tudo parece público e indisponível para os cidadãos. Só que, vistas bem as coisas, nomeadamente, as disfunções do sistema oficial de justiça criminal, haverá de haver uma via salvífica. Onde o estado tropeça, talvez os cidadãos tenham de fazer justiça pelas suas mãos. Não pela «lei do lynch», como às vezes sucede, em desespero, mas pela via pacífica…

O debate está na ordem do dia, entre a via judicial e a via não judicial de resolução de litígios, sucedendo que os segundos ganham terreno em relação aos primeiros; o âmbito dos meios alternativos de resolução de litígios tem vindo a aumentar de dimensão, existindo várias soluções para além do mecanismo clássico da arbitragem.

A via judicial impõe-se por si em certas circunstâncias: (i) quando as partes não convenham numa solução de outra natureza (ii) para situações em que a natureza dos caso se não encontra dentro do âmbito da disponibilidade privada das partes (v.g.: casos de natureza penal em que o crime tenha natureza pública, insusceptível de desistência do procedimento ou renúncia à queixa). Classicamente era a via única na área da justiça penal.

Mas é claro que a via judicial tem os seus inconvenientes, pois que é (i) lenta (ii) insusceptível de auto-regulação (iii) imprevisível nos seus efeitos (iv) onerosa, não tanto pelas custas judiciais, mas pelos encargos globais da litigação (v) sendo que, por outro lado, acaba por oferecer por vezes uma solução que não é sequer uma via de solução aceite pelos intervenientes em presença.

Faça-se um inquérito

Ouse-se fazer um inquérito nacional à porta dos tribunais, ouvindo todos os que participaram no sistema, dos profissionais aos leigos que a ele se submetem, nisso incluindo os participantes acidentais, como o são as testemunhas. Veja-se quantos estão satisfeitos com a reposta do sistema. Conclua-se em que medida o sistema formal de justiça por vezes não resolvendo o problema gera outros, criando conflitos, ressentimentos, suspeições, que são fonte de novas disrupções sociais.

Daí o recurso às várias vias alternativas de resolução de litígios. Classicamente o meio mais conhecido de resolução não judicial de conflitos é a arbitragem.

Mas a arbitragem tornou-se ela própria um meio demasiado formalizado e oneroso de resolução de litígios. Daí que tenham surgido outros meios. É o que na nomenclatura britânica se chamam os alternative dispute resolution, os ADR’s. Eles são uma alternativa àquilo que já parecia ser uma alternativa, a arbitragem.

Globalmente, os ADR’s têm significativas vantagens e alguns inconvenientes.

Entre as vantagens importa registar (i) a flexibilidade, podendo ser moduladas as soluções mais adequadas em função das necessidades específicas do caso (ii) a celeridade, dado dispensarem o processo complexo inerente à arbitragem (iii) a economia, por dispensarem os meios que a arbitragem reclama (iv) e a potenciação do consenso, porque na sua maioria são centradas em processos não decisórios, ou em que para a formação da decisão concorrem as próprias partes.

Mas também existem inconvenientes gerais, tais como (i) inaplicabilidade a disputas de elevada litigiosidade (ii) não adaptação a situações em que a natureza da disputa implique questões de aprofundado cunho técnico-jurídico (iii) inaplicabilidade a situações em que estejam em causa, para além dos interesses das intervenientes em confronto, os interesses de terceiros.

Mas na área do Direito Criminal?

Postas estas questões o que há que permita, o que há que aconselhe, e o que há que proíba o uso dos ADR’s na área criminal? Vejamos cada uma das situações por si, começando pelo que proíbe.

Entre os factores que vedam a aplicação dos ADR’s a matérias de cunho penal estão seguramente os seguintes:

(1) situações em que estejam em causa crimes de natureza pública, isto é aqueles em que o início do procedimento criminal e sua prossecução escapam ao controlo dos cidadãos privados, antes pertence, segundo princípio da oficialidade, ao Estado e seus agentes, nomeadamente ao Ministério Público;

(2) situações em que a autonomia da vontade das partes poderá ofender imposição directa da lei, pois que (i) como se expressa o nosso Código Civil, no seu artigo 398º, n.º 1 em matéria de obrigações em geral «as partes podem fixar livremente, dentro dos limites da lei, o conteúdo positivo ou negativo da prestação» (ii) valendo o mesmo para os contratos, pois que, agora o n.º 1 do artigo 405º do mesmo Código Civil dispõe no sentido de que «dentro dos limites da lei, as partes têm a faculdade de fixar livremente o conteúdo dos contratos, celebrar contratos diferentes dos previstos neste código ou incluir nestes as cláusulas que lhes aprouver» (iii) e sendo certo que o próprio exercício de um direito é ilegítimo «quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito»;

(3) situações em que o arranjo obtido pelas partes não se possa repercutir ou colida mesmo com interesses de terceiros estranhos ao meio alternativo de resolução do litígio.

Pois vejamos…

Os meios alternativos têm o seu campo possível de acção imediata na área penal, nas seguintes áreas:

(1) nos casos de crimes de natureza particular, nos quais o início do procedimento criminal depende de queixa, ou em que é possível aos ofendidos pactuarem com os arguidos a desistência de queixa;

(2) naquelas áreas em que o próprio sistema processual penal abriu as portas a uma relativa privatização do processo penal, como (i) é o caso da possibilidade de, em alternativa a uma acusação, o MP optar pela suspensão provisória do processo para que sejam cumpridas pelo arguido certas injunções e regras de conduta, após o que ocorrerá o arquivamento (ii) sucede no caso do arquivamento do processo em caso de ser previsível que a seguir para julgamento o arguido seria sujeito a uma dispensa de pena.

(3) no campo das indemnizações civis, em que é possível transaccionar quer o valor quer o próprio foro competente, fazendo assim a própria vítima acertar com o arguido e com os responsáveis puramente civis os termos pelos quais se obterá a compensação dos prejuízos causados com o crime.

Existem, porém, outras áreas às quais é possível estender o sistema, tirando partido das potencialidades do sistema:

(1) assim, dado que o arguido pode confessar a matéria crime e em certos casos a confissão, quando livre e espontânea, total e em reservas, e por crimes puníveis com prisão de máximo inferior a três anos, permite um encurtamento dos termos do próprio julgamento e uma redução da pena e das custas do processo, nada parece impedir a eventualidade de ocorrerem aqui meios alternativos para que seja encontrada essa decisão de confissão;

(2) dado que o recurso penal e civil em processo penal não é obrigatório, então nada parece afastar a eventualidade de por via dos meios de que tratamos se alcançar a decisão quanto (i) a recorrer ou não (ii) quanto à delimitação do objecto do recurso (iii) ou quanto aos termos estratégicos do próprio recurso.

Uma nova política!

É evidente que esta opção é a mera consequência de um conjunto de opções estratégicas assumidas pelo sistema de justiça penal nos últimos anos, e que se reconduzem às seguintes linhas de força:

(1) desjudiciarização da justiça penal, naquilo em que supõe que algumas das matérias que integram classicamente a competência de juízes possam ser atribuídas a outras entidades;

(2) diversão, naquilo que implica que algumas das matérias que tradicionalmente são confiadas ao sistema de justiça penal saiam do mesmo, encontrando vias alternativas de composição;

(3) privatização e «outsourcing» de algumas instâncias de administração da justiça e de controlo do crime, o que tendo começado pelo próprio sistema prisional se tem vindo a repercutir em relação a outras áreas complementares do sistema, citando-se hoje como áreas potenciais nas quais o sistema pode ter uma oportunidade de actuar os seguintes (i) investigações forenses (ii) perícias médicas e outras no campo da polícia científica (iii) notificações e cumprimento de mandados judiciais (iv) transportes de reclusos (v) funções de segurança (vi) formação.

(10) oportunidade acusatória, permitindo ao MP não proceder ou não acusar em certas circunstâncias em que entenda preferível a abstenção de acção;

Num país como o nosso em que o princípio tradicional tem sido o da obrigatoriedade, a regra da oportunidade começa a fazer a sua aparição. No novo Código de Processo Penal ela fez a sua entrada, quer na forma da suspensão provisória do processo mediante injunções e regras de conduta, cumpridas as quais o processo é arquivado, quer ao permitir ao MP a opção pelo processo sumaríssimo, no qual fundamentalmente o arguido aceita, em negociação com o tribunal, o pagamento de uma multa.

Não chegamos ao ponto de termos um sistema de plea bargaining, como na tradição anglo-americana. Mas alguma flexibilidade está a surgir.

Finalmente, é todo o campo das perícias, como vimos no último artigo.

Ora chegados a este ponto, surge a questão fulcral: sendo certo que os ADR’s podem ser aplicados ao campo da justiça penal, qual deles terá o seu campo preferencial de eleição? Parece-nos que numa certa medida não há nenhum que possa ser a priori excluído. Assim haja vontade política."

SSP
A Member of the Alternative Dispute Resolution Web Ring

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